Caso Kiss: Maior julgamento da história do RS começa hoje

Começa nesta quarta-feira o julgamento dos quatro réus acusados pela tragédia da Boate Kiss, ocorrida em Santa Maria, há mais de oito anos. Nos próximos 15 dias – tempo estimado para a duração dos trabalhos no plenário do 2º andar do Foro Central (prédio I), em Porto Alegre – os destinos dos sócios da casa noturna Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, do vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, e do produtor musical Luciano Bonilha Leão serão traçados sob a égide da justiça. Todos responderão por homicídio simples com dolo eventual (242 vezes consumado, pelo número de mortos; e 636 vezes tentado, número de feridos).

O juiz Orlando Faccini Neto presidirá o júri. Nesta quarta-feira, o início do julgamento está marcado para as 13 horas. Nos demais dias, o começo será sempre às 9h. Haverá sessões nos três turnos dos dias, inclusive aos finais de semana, estendendo-se até as 23h. Porém, dependendo das circunstâncias, os trabalhos poderão entrar madrugada adentro. Estão previstas uma hora de intervalo para almoço/janta e pausa para o descanso dos jurados.

“Todo problema que for passível de resolução para que o júri comece e termine buscarei resolver com todas as minhas forças”, afirmou o juiz Orlando Faccini Neto, durante coletiva de imprensa.

O Tribunal do Júri será composto pelo Conselho de Sentença, formado pelo juiz Orlando Faccini Neto, titular do 2º Juizado da 1ª Vara do Júri da Comarca de Porto Alegre, e por sete jurados que serão escolhidos entre um total de 25 pessoas, por meio de sorteio, na manhã desta quarta-feira.

Esses sete jurados, que estarão incomunicáveis, serão os mesmos até o fim do julgamento e ficarão hospedados em hotéis e acompanhados em tempo integral por Oficiais de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJ/RS). O transporte também será feito pelo Poder Judiciário. A alimentação será fornecida por uma empresa terceirizada contratada pelo TJ/RS.

O plenário tem 350 metros quadrados e está dividido em palco (espaço onde ficam o juiz, assessoria, oficiais de justiça, jurados, acusação, assistente, réus e defesas) e plateia, onde estarão familiares, representantes das defesas, imprensa e autoridades. Por causa dos protocolos de prevenção à pandemia, serão liberados 124 lugares na plateia. A distribuição será da seguinte maneira: Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM): 58 lugares (sendo 2 para apoio); Imprensa: 12 lugares (sendo 8 para a imprensa em geral); Acusados: 28 lugares (7 para cada um deles); Familiares que não integram a AVTSM: 10 lugares; Ministério Público: 2 lugares; Autoridades: 8 e Reservados: 6.

Após serem ouvidos os sobreviventes e as testemunhas, haverá o interrogatório dos réus Elissandro, Mauro, Marcelo e Luciano, que podem ficar em silêncio, se optarem por isso. Nos depoimentos serão escutadas 14 vítimas (indicadas pelo MP, Assistente de Acusação e pela defesa de Elissandro Spohr), cinco testemunhas de acusação arroladas pelo MP, cinco testemunhas arroladas pela defesa de Elissandro Spohr, cinco testemunhas arroladas pela defesa de Mauro Londero Hoffmann e quatro testemunhas arroladas pela defesa de Marcelo de Jesus dos Santos.

Na etapa dos debates, acusação e defesas terão oportunidade de apresentarem suas teses e argumentos aos jurados. O tempo total dessa fase do julgamento será de 9 horas, assim distribuídas: 2 horas e meia para MP/Assistente de Acusação (dividem o tempo), 2 horas e meia para as defesas dos réus (dividem o tempo), 2 horas de réplica para o MP/Assistente de Acusação (dividem o tempo) e 2 horas de tréplica (dividem o tempo).

Finalizados os debates, os jurados serão questionados se estão prontos para a decisão. Em uma sala privada, os jurados decidirão de forma individual (o voto é secreto), respondendo a perguntas formuladas pelo magistrado, mediante o depósito de cédula em uma urna. A maioria prevalece.

O júri será transmitido ao vivo pelo canal do TJ/RS no Youtube. Haverá ainda dois auditórios com transmissão ao vivo, localizados nos 5° e 6° andares do Foro.

Acusação e defesa

Os promotores de Justiça responsáveis pela acusação são Lúcia Helena Callegari e David Medina da Silva, que terão o auxílio na acusação da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), além de outras vítimas representadas individualmente por seus defensores constituídos.

Os advogados Jader da Silveira Marques e Leonardo Sagrillo Santiago cuidarão da defesa de Elissandro. Enquanto os advogados Jean de Menezes Severo, Gustavo da Costa Nagelstein, Tomás Antônio Gonzaga, Filipe Decio Trelles e Martin Mustschall Gross defenderão Luciano.

Por sua vez, a advogada Tatiana Vizzotto Borsa cuidará dos interesses de Marcelo, e os advogados Mario Luis Lirio Cipriani, Bruno Seligman de Menezes, Adriano Farias Puerari e Diego da Rosa Garcia ficarão responsáveis pela defesa de Mauro.

“O Poder Judiciário do RS vem se preparando há algum tempo para o júri do caso Kiss, do ponto de vista da organização de infraestrutura e logística”, disse o presidente do Conselho de Comunicação Social do TJ/RS, Antonio Vinicius Amaro da Silveira, durante entrevista com os jornalistas. “Esse julgamento representa a capacidade que temos de responder à sociedade de forma qualificada e eficaz, mesmo em um caso tão complexo como este e que demandou uma enormidade de incidentes recursais”, completou.

Passaporte vacinal

Todas as pessoas que estarão no júri do caso Kiss deverão apresentar passaporte vacinal ou o exame PCR feito 72 horas antes de comparecer ao Foro. A determinação é do Comitê de Monitoramento do Novo Coronavírus (Covid-19). A medida abrange as equipes de trabalho envolvidas no julgamento, além de jurados, testemunhas, imprensa, familiares, sobreviventes e partes que circularão nas dependências do local. Para aqueles não vacinados, será analisada a situação, conforme a peculiaridade. Se alguém estiver com suspeita de contaminação, haverá exames sendo realizados no próprio Foro.

Segurança

O TJ/RS reforçou o número dos agentes de segurança institucionais e das equipes de vigilância privada contratadas que já atuam junto ao Foro. Haverá o apoio das forças de Segurança Pública, especialmente da Brigada Militar, no entorno do Foro e dos hotéis onde ficarão os jurados e as testemunhas.

Salas de apoio

Quatro auditórios com transmissão ao vivo estarão disponíveis para familiares, sobreviventes, representantes das defesas e público em geral que se credenciaram previamente no site do TJ/RS. A imprensa também contará com uma sala de apoio. Ao todo, estão credenciados 43 veículos de comunicação para a cobertura do maior julgamento da história do Estado.

Burocracia

Até se chegar a esta quarta-feira, data do primeiro dia do julgamento, seis processos judiciais apuraram as responsabilidades, e o principal deles, que tramitou na 1ª Vara Criminal da Comarca, foi dividido e originou outros dois – falso testemunho e fraude processual. Houve a concessão do desaforamento (transferência de julgamento para outra comarca), a três dos réus – Elissandro, Mauro e Marcelo – para serem julgados em uma Vara do Júri da Comarca da Capital.

Luciano foi o único que não manifestou intenção nessa troca. Porém, por meio de um Pedido de Desaforamento do MP, o TJ/RS determinou que o produtor musical se juntasse aos demais acusados, para participar de um julgamento único, na capital gaúcha.

Após passar a tramitar em Porto Alegre, o processo ganhou o número 001/2.20.0047171-0. O processo possui 91 volumes e mais de 19,1 mil páginas.

Tragédia abalou cidade e o resto do país

A madrugada de 27 de janeiro de 2013 foi uma espécie de punhal que acertou impiedosamente o coração de dezenas de famílias. A Boate Kiss pegou fogo em Santa Maria, a cerca de 289 km de distância de Porto Alegre, durante a apresentação da banda Gurizada Fandangueira, que acendeu um sinalizador pirotécnico no palco em torno das 2h30min. Em seguida, faíscas atingiram o teto, forrado de espuma e isopor. As chamas rapidamente se alastraram devido ao material inflamável usado como isolamento acústico, o que produziu uma fumaça preta e tóxica, além de liberar cianeto. Trata-se do mesmo elemento químico que foi usado no campo de concentração nazista de Auschwitz, na 2ª Guerra Mundial. Houve pânico, confusão e corre-corre em busca de uma saída.

Na época do incêndio, testemunhas relataram que alguns extintores não funcionaram quando os seguranças do local tentaram apagar as chamas.

A boate, que comportava cerca de 750 pessoas, estava superlotada. Conforme os investigadores apuraram, havia no local cerca de 1,3 mil visitantes. Para o Corpo de Bombeiros, esse número de frequentadores era ainda maior – em torno de 1,5 mil, estimou na oportunidade.

Outro fator que desencadeou tantas mortes foi que a casa noturna possuía apenas um acesso, usado tanto para entrada quanto para saída de pessoas, com porta de tamanho reduzido. Não havia saídas de emergência para o público. Era um alçapão pronto para impedir a fuga durante uma situação inesperada.

A perícia ainda constatou a falta de itens de segurança como chuveiros automáticos de teto e de mais luzes de emergência indicativas do local de saída. Em desespero, sem enxergar e com dificuldades para respirar, o público acabou se dirigindo para os banheiros, onde a maioria das vítimas foi encontrada, com muitos corpos sobrepostos aos dos primeiros que chegaram e tombaram nesse local.

A perícia concluiu que 100% das mortes foram causadas por asfixia. Os aparelhos de ar e de exaustão contribuíram para o trágico desfecho, ao propagarem a fumaça tóxica em vez de fazerem sua dispersão. A Kiss estava aberta mesmo com o alvará fornecido pelo Corpo de Bombeiros vencido desde 10 de agosto de 2012. Também houve relatos de quem estava na festa e escapou de que os seguranças barravam pessoas que queriam sair sem pagar a comanda.

Os feridos foram direcionados para hospitais de Santa Maria e da região metropolitana de Porto Alegre, além da própria Capital, para onde foram levados com apoio de helicópteros da Força Aérea Brasileira. O velório coletivo das vítimas aconteceu em um dos ginásios do Centro Desportivo Municipal de Santa Maria. Um total de 235 pessoas morreu no dia da tragédia, e outras sete faleceram posteriormente.

As imagens de desespero e de quem era atendido do lado de fora da boate correram o mundo. Para assegurar os direitos e interesses dos familiares, além de garantir o auxílio e o amparo aos sobreviventes da tragédia, foi criada a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), no dia 23 de fevereiro de 2013. Muitos pais e mães que perderam os filhos na casa noturna buscam algum conforto em ações promovidas pelos integrantes.

Testemunhas

O ex-prefeito de Santa Maria Cezar Schirmer, atualmente secretário Municipal de Planejamento e Assuntos Estratégicos da Prefeitura de Porto Alegre, e o promotor de Justiça Ricardo Lozza foram arrolados como testemunhas no júri do caso Kiss. O juiz Orlando Faccini Neto concedeu o pedido feito pela defesa do réu Elissandro Callegaro Spohr para substituir duas testemunhas pelos novos indicados em novembro. O magistrado levou em consideração que a troca de testemunhas não encontra regra específica na legislação processual penal de hoje em dia (depois de mudança do artigo 397 do Código de Processo Penal, que indicava razão para a substituição de testemunhas), existindo dúvida se é preciso ou não um motivo para alteração de depoentes.

“Independente disso, e sabido seja que na jurisprudência há dúvida acerca do tema, na espécie, em homenagem à ampla defesa, afastando-se os argumentos elencados pelo Ministério Público, defiro o pedido de substituição das testemunhas apontadas”, salientou Faccini ao site do TJ/RS na ocasião.

Schirmer e Lozza confirmaram que irão depor no júri. “Assim como todos, também quero justiça. Estarei à disposição do Poder Judiciário como sempre estive ao longo de minha vida”, respondeu Schirmer.

Auxílio

Os familiares das vítimas receberão auxílio para a viagem, alimentação e estadia na Capital. Restaurantes associados ao Sindicato de Hospedagem e Alimentação de Porto Alegre e Região (Sindha) fornecerão alimentação gratuita e prestarão apoio às famílias inscritas para acompanharem o júri. Para cada dia de júri, um restaurante associado diferente será o responsável pela alimentação dos familiares. Serão 90 almoços fornecidos diariamente pelos associados.

A logística ficará a cargo da Prefeitura de Porto Alegre, que irá se encarregar de buscar os almoços nos restaurantes e levar até as famílias. O grupo recebeu ainda a ajuda de empresários do setor hoteleiro e do Cpers-Sindicato, entidade que abriu as portas de sua sede para abrigar 25 pessoas. A AVTSM promoveu uma “vaquinha” virtual para arrecadar dinheiro, a fim de ajudar no transporte, na estadia e na alimentação dos familiares durante os dias que durar o julgamento. A meta era angariar R$ 50 mil e, até esta quarta-feira, mais de R$ 40,9 mil já haviam sido arrecadados. A chamada para a colaboração coletiva era “242 motivos para exigirmos Justiça.”

Por sua vez, o Comando Militar do Sul (CMS) fornecerá alojamento para as famílias das vítimas nos quartéis da Capital. Por medidas de privacidade e segurança, os locais e o número de hóspedes não serão divulgados pelo Exército.

Últimos atos

Houve o pedido de impugnação da maquete digital elaborada por uma equipe da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), a pedido do Ministério Público, que deverá ser usada pela acusação no julgamento. O dispositivo recriou o interior da Boate Kiss depois de extensa pesquisa de documentos e fotos. O pedido de impugnação foi feito pelo advogado Jader Marques, na semana passada.

Além disso, o juiz Orlando Faccini Neto deferiu, na última segunda-feira, pedido de dispensa de oitiva de uma das testemunhas arroladas pelo réu Marcelo de Jesus dos Santos. Com isso, serão ouvidas 19 testemunhas em plenário. Também deverão ser ouvidos 14 sobreviventes.

O julgamento promete ser tenso dentro do Foro, além de ser marcado por manifestações dos familiares das vítimas no lado de fora.

Fonte: Correio do Povo / Foto: Medianeira102.7

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