A decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, que culminou na prisão dos quatro condenados pela tragédia da boate Kiss, não impedirá a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) de fazer a apreciação de mérito do caso em sessão nesta quinta-feira (16), a partir das 14h.
Fux suspendeu os efeitos do habeas corpus preventivo emitido na sexta-feira (10) pelo desembargador Manuel José Martinez Lucas, da 1ª Câmara Criminal, decisão que impediu a prisão dos quatro condenados da Kiss após o término do júri. O ministro cassou o despacho e os condenados — Elissandro Spohr, Mauro Hoffmann, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão — apresentaram-se para iniciar o cumprimento da pena a partir da noite de terça-feira (14).
Do ponto de vista jurídico, é possível que a 1ª Câmara, integrada por três desembargadores, reafirme o habeas corpus concedido por Lucas em favor dos condenados na análise de mérito e, se isso acontecer, eles deverão ser liberados da prisão, asseguram especialistas em matéria criminal.
Isso ocorre porque a decisão de Fux foi meramente uma suspensão da liminar, o que não diz respeito ao mérito, sobre o qual não há nenhum despacho dos tribunais superiores para o caso em discussão. Dessa forma, o TJ-RS está com sua independência assegurada para tomar e executar uma decisão, seja ela qual for, dizem especialistas na matéria.
— A 1ª Câmara Criminal tem condição de manter o julgamento. No mérito, poderá revogar ou reafirmar o entendimento do desembargador que deu a liminar, determinando a liberdade. O STF apenas suspendeu os efeitos da liminar, e a 1ª Câmara fará um julgamento de mérito. Não fica prejudicado. Tecnicamente, o TJ-RS tem autonomia para decidir sobre o habeas corpus — diz o advogado criminalista Alexandre Dargel.
Também especialista na matéria criminal, o advogado Lúcio de Constantino tem análise semelhante quanto à manutenção do julgamento na 1ª Câmara Criminal, mas faz a ressalva de que o despacho de Fux pode exercer influência jurídica sobre os desembargadores.
— O Tribunal de Justiça é independente, ele pode e deve pautar a análise do mérito conforme o seu entendimento. Por outro lado, não há como negar que a decisão do ministro do STF vai ter um peso relativo, podendo estabelecer uma tendência no sentido de manutenção da prisão — afirma Constantino.
No seu despacho, Fux escreveu que as decisões do júri são soberanas e que o Código de Processo Penal, após modificações introduzidas em 2019, permite que o presidente do júri determine a prisão dos condenados em caso de penas de reclusão iguais ou superiores a 15 anos. Os quatro acusados da Kiss receberam penas variáveis entre 18 anos e 22 anos e seis meses de prisão, motivo pelo qual o juiz Orlando Faccini Neto, presidente do júri, determinou o início da execução da pena. Em duro despacho, Fux afirmou que o habeas corpus foi emitido “ao arrepio da lei”. Ele ainda salientou que, pelo mesmo Código de Processo Penal, as apelações a decisões condenatórias do júri não têm efeito suspensivo. Ou seja, segundo ele, não ficam inviabilizadas execuções de medidas enquanto o condenado busca reverter via recursos.
“A decisão impugnada do Tribunal de Justiça do Rio Grande Sul causa grave lesão à ordem pública ao desconsiderar, sem qualquer justificativa idônea, os precedentes do Supremo Tribunal Federal e a dicção legal explícita do (...) Código de Processo Penal. Ao impedir a imediata execução da pena imposta pelo Tribunal do Júri, ao arrepio da lei e da jurisprudência, a decisão impugnada abala a confiança da população na credibilidade das instituições públicas, bem como o necessário senso coletivo de cumprimento da lei e de ordenação social”, redigiu o presidente do STF.
A defesa de Elissandro Spohr, liderada pelo advogado Jader Marques, manifestou-se em nota: “Quanto à decisão do ministro Fux, válida apenas para a suspensão da liminar, temos a expectativa de que será afastada na quinta-feira, quando será julgado o mérito do habeas corpus, restabelecendo-se o direito de liberdade dos réus”.
Já o advogado Jean Severo, defensor de Luciano Bonilha Leão, acredita que a análise de mérito pela 1ª Câmara Criminal levará à soltura dos quatro condenados da Kiss.
— Se isso for confirmado, vamos verificar qual será a manobra do Ministério Público. E vamos trabalhar também no STF com um agravo — explicou Severo.
O agravo citado pelo advogado provavelmente será uma medida interposta à decisão de Fux de suspender a liminar em favor dos condenados. Com isso, a intenção é levar a discussão do caso para o colegiado do STF, buscando a manutenção do habeas corpus e da liberdade. Severo ainda destaca o recesso do Judiciário, entre 20 de dezembro de 2021 e 7 de janeiro de 2022, o que poderá atrasar a análise de futuros recursos após o julgamento da 1ª Câmara Criminal nesta quinta.
Advogada de Marcelo de Jesus dos Santos, Tatiana Borsa afirmou que irá aguardar o julgamento do habeas corpus para depois definir os "próximos passos". A defesa de Mauro Hoffmann não retornou o contato da reportagem.
O Ministério Público, que obteve sucesso ao apresentar recurso ao STF requerendo as prisões, também se manifestou em nota: “O MP espera que seja respeitado o entendimento já firmado pelo STF, nossa Corte Suprema, e, em caso de decisão diferente, vai avaliar qual a via recursal adequada”.
Embora não tenha dado detalhes, é possível que o Ministério Público apresente novo recurso ao STF caso a 1ª Câmara Criminal liberte os quatro condenados. A diferença é que, nesta hipótese, seria solicitada a suspensão de uma decisão colegiada do TJ-RS.
O julgamento na 1ª Câmara Criminal
O mérito do habeas corpus em favor dos quatro condenados da boate Kiss está previsto para ser julgado na sessão desta quinta-feira (16) da 1ª Câmara Criminal, a partir das 14h. É o item número 72 da pauta. A sessão é virtual e não pode ser transmitida ou acompanhada pela imprensa. Três desembargadores irão compor o colegiado, com direito a voto: Manuel José Martinez Lucas, relator do habeas corpus e responsável pela decisão liminar, além de Jayme Weingartner Neto e Honório Gonçalves da Silva Neto.
Polêmicas
Especialistas na matéria criminal como o advogado Alexandre Dargel entendem que o instrumento da suspensão de liminar, utilizado para prender os quatro condenados da Kiss, não seria cabível no caso específico. O ministro Luiz Fux, do STF, reconheceu que o cabimento da medida era “excepcionalíssimo”, mas argumentou ser aceitável devido ao risco de “grave lesão à ordem pública”, um dos quesitos que permitem a derrubada de decisões judiciais por instâncias superiores.
— A questão é identificar qual seria a grave lesão à ordem pública se essas pessoas (condenados) estavam soltas — avalia Dargel.
Ele ainda avalia que, antes de chegar ao STF, o caso deveria ter sido discutido no Superior Tribunal de Justiça (STJ). O criminalista menciona que isso pode ter caracterizado uma “supressão de instância”, um suposto equívoco dentro do ordenamento jurídico.
Nulidades
A defesa de Elissandro Spohr, condenado a 22 anos e seis meses de prisão em regime fechado, já apresentou apelação ao Tribunal de Justiça requerendo a declaração de nulidade do júri da boate Kiss. A medida foi protocolada na terça-feira (14).
“O processo da boate Kiss é totalmente nulo por ilegalidades que aconteceram desde o sorteio de jurados ao curso do julgamento, passando pela votação e indo até a sentença. Os erros gravíssimos estão todos registrados no processo e serão levados ao Tribunal de Justiça no recurso de apelação da defesa”.
Sucessão de decisões judiciais
10 de dezembro, sexta-feira
- Réus da Kiss são condenados no júri, e juiz Orlando Faccini Neto determina recolhimento à prisão para imediato início de execução da pena
- Enquanto Orlando Faccini Neto lia a sentença em plenário, o desembargador Manuel José Martinez Lucas, da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça, expediu liminarmente um habeas corpus preventivo para impedir a prisão dos acusados. O pedido foi feito pela defesa de Spohr, mas o desembargador Lucas, ao conceder, estendeu seu benefício aos demais
14 de dezembro, terça-feira
- Presidente do Supremo Tribunal federal (STF), Luiz Fux acata recurso do Ministério Público e suspende os efeitos da liminar do desembargador Lucas. Fux entendeu que a legislação em vigor permite o início imediato da execução da pena para condenados a 15 anos ou mais de prisão no Tribunal do Júri, caso dos réus da Kiss
16 de dezembro, quinta-feira
- Os três desembargadores da 1ª Câmara Criminal irão se reunir para analisar o mérito do habeas corpus concedido liminarmente por Lucas. Apesar da decisão do ministro Fux, essa sessão não fica prejudicada porque tratará de mérito, enquanto Fux apenas suspendeu um despacho liminar. Ou seja, os três desembargadores poderão deliberar normalmente, seja pela manutenção da prisão, com a cassação da liminar, ou com a determinação de liberdade dos condenados, em caso a decisão de Lucas obter maior de votos no colegiado
informações: GZH