Instalação de espuma na boate Kiss não foi recomendada por acordo com o MP nem por projeto de engenharia
A instalação de espuma no palco da boate Kiss, em Santa Maria, como mecanismo para conter o ruído causado pelas festas, não foi recomendada, determinada e nem sequer mencionada no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado por representante da empresa com o Ministério Público (MP).
Qualquer menção à espuma inflamável, que acabou sendo utilizada na casa noturna, também inexiste no projeto técnico de engenharia feito por um profissional após a assinatura do TAC. O acordo da Kiss com o MP previa a contratação de um "profissional legalmente habilitado que fará projeto de isolamento acústico" para conter o barulho das festas, o que incomodava a vizinhança.
O fato de inexistir citação, recomendação ou determinação de colocação de espuma no teto do palco, seja no TAC ou no projeto de engenharia, contraria um dos eixos da defesa do réu Elissandro Callegaro Spohr, dono da Kiss. Ele afirmou, em entrevista recente a GZH, que "a espuma só existe porque fui obrigado a fazer um termo de ajustamento de conduta (TAC) pelo som das festas".
Spohr ainda disse, na mesma entrevista (assista abaixo), que o promotor Ricardo Lozza, responsável pelo TAC no MP, e o engenheiro Samir Samara, que assina o projeto de isolamento acústico como um dos responsáveis técnicos, supostamente haviam lhe indicado a espuma para forração acústica:
— Eu fui até o promotor e ele me disse com as palavras dele: "Procura fulano, fulano, fulano que usaram espuma e fizeram isolamento acústico". A espuma era de uso comum.
Sobre o engenheiro, Spohr afirmou:
— Eu liguei para o Samir, que era o outro engenheiro. Ele me disse: "Cara, eu já te falei que tu tens de fazer um tratamento acústico aí. Tu vai ter de botar espuma em todo o teto e em toda a parede".
Nenhuma das três afirmações de Spohr encontra respaldo nos documentos, seja no TAC ou no projeto de engenharia, que são públicos e foram obtidos pela reportagem.
A espuma acabou sendo determinante para a tragédia na boate Kiss, na madrugada de 27 de janeiro de 2013. Quando as fagulhas produzidas pelo artefato pirotécnico erguido pelo vocalista Marcelo de Jesus dos Santos, da banda Gurizada Fandangueira, entraram em contato com a espuma, junto ao teto do palco, houve início de incêndio. O fogo se alastrou, e a queima da espuma produziu fumaça tóxica. Resultaram 242 mortos, em maioria jovens universitários, e 636 feridos.
Spohr e mais três réus irão a júri a partir do próximo dia 1º de dezembro, em Porto Alegre, respondendo à acusação de 242 homicídios simples, com dolo eventual, quando assume-se o risco de matar, e 636 tentativas de homicídio.
O TAC tem seis páginas e data de 22 de novembro de 2011, firmado no contexto de um inquérito civil que apurava possível perturbação do sossego pelo barulho causado na boate. Assinado pelo promotor Ricardo Lozza e por Spohr, o documento traça como um dos seus objetivos a contenção de ruídos, em observância aos limites de barulho toleráveis pela legislação da época. Outros aspectos da administração da boate, como questões relacionadas à prevenção de incêndio, não são objeto do acordo.
No TAC, o MP não determinou nenhuma intervenção a ser feita. Ficou estabelecido, em comum acordo, na cláusula terceira, que a Kiss contrataria profissional de engenharia habilitado para que ele ficasse responsável pelo desenho de um projeto de obras que contivessem o ruído. O passo seguinte, previsto na mesma cláusula, era "executar o projeto de isolamento acústico supramencionado".
O projeto foi feito pelo engenheiro civil Miguel Ângelo Pedroso. Em duas páginas de memorial descritivo — documento que foi juntado ao processo pela defesa da Kiss à época —, o profissional prevê intervenções no palco e no salão de dança. Quanto ao palco, é determinado que ele seja transferido ao lado oposto da boate, sendo demolida a estrutura existente, que era de madeira.
O novo palco deveria ser de alvenaria e concreto e seu piso deveria ser revestido com madeira compensada, assentada sobre placas de lã de vidro. A parede de fundo também deveria ser revestida com madeira sobre lã de vidro em toda a extensão do palco. O projeto de engenharia não estabelece nem cita nenhuma medida de intervenção no teto do palco boate.
Já no salão de dança, o projeto prevê levantamento de duas paredes de pedra de arenito e o rebaixamento do forro de toda essa área com gesso acartonado em duas camadas, estruturadas em perfil de aço galvanizado e preenchimento com lã de vidro. Tanto no teto do palco quanto no do salão, não é feita nenhuma citação no projeto à cobertura plena com espuma, conforme afirmou Spohr.
No memorial descritivo, é projetado que somente no salão, no ponto de encontro do teto de gesso com a parede, seria instalado um filete de 20 milímetros de largura por 8 milímetros de espessura de um composto conhecido como batente de borracha esponjosa. Contatado pela reportagem, o engenheiro projetista Pedroso explicou que trata-se de "uma espuma acústica não inflamável que deveria ser colocada no encontro do gesso com a alvenaria para melhorar a vedação, mas a estrutura acabou não sendo utilizada na execução da obra".
O engenheiro que fez a execução do projeto, Samir Samara, também foi contatado pela reportagem e afirmou, assim como Pedroso, que esse equipamento acabou não sendo utilizado.
Atestados dos profissionais de engenharia que estão juntados ao inquérito civil apontam que as obras foram executadas dentro das demais previsões técnicas do projeto, com data de finalização em 20 de fevereiro de 2012. A partir dali, as intervenções foram vistoriadas e houve autorização de funcionamento da boate.
O engenheiro Pedroso diz que, após a inspeção da obra acústica, Spohr fez por conta própria, por fora do projeto técnico, a colocação de "espuma de colchão", que é inflamável e inapropriada.
O engenheiro Samara também confirma a versão de que, após a execução do projeto de engenharia e da fiscalização da obra, Spohr teria supostamente comprado espuma de colchão e colocado no teto da boate por conta própria.
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